sexta-feira, 23 de outubro de 2015



Ela girou a maçaneta e entrou sem bater.
Ele estava deitado no sofá, dormindo.
Ao lado da tv, um maço de cigarros. Ela pegou um e sentou na poltrona. Acendeu.
Ele acordou, sentei no sofá. Deitou a cabeça em meu colo e me beijou.
Ela o afetava.
Conversaram. Assistiram à tv. Riram. Ela espalhou a fumaça pelo apartamento.
A presença dela o afetava.
Eu estava ali, de expectadora daquela intimidade, encolhida, envergonhada e intrusa.
O cinzeiro enchia e o cigarro acabava.
Ela estava ali, com a guimba entre os dedos e toda a sua imponência, olhar perdido e pensamento em outro lugar. Alguém a afetava.
Quando o cigarro acabou, levantou-se da poltrona para ir embora. Não ficaria para o jogo.
Saiu pela porta da mesma maneira que entrou: sem hesitar, sem pedir licença, nem permissão. Era quase dona daquele lugar. Já havia pisado naquele chão algumas vezes, muitas vezes antes.
A ausência dela também o afetava.
Continuei ali, com a cabeça dele em meu colo, passando os dedos entre aqueles cabelos que eram, ainda, tão novos para mim. Calou-se. Não mais ria, nem conversava.
Levantou-se, colocou no jogo e sentou ao meu lado. Não mais me beijava.
Minha presença o afetava.
Com o tempo, tornei-me apenas um pretexto para que ele pudesse vê-la, mas ela nunca mais apareceu. Ele se cansou das tentativas frustradas e de demonstrar um interesse falso e forçado. Agora, era ele quem me afetava. A ausência dele também irá.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

                                                     "If by my life or death I can protect you, I will.                                                                                                  You have my sword."

Você sabe, a vida anda difícil. Pra você e pra mim. A vida anda tão difícil e tão custosa que nós vamos nos agarrando a qualquer coisa ou galho mínimo e frouxo que aparecer pelo caminho. Até alguns dias atrás, meu galho era você. Você era um Salgueiro. Não sabe o que é? Você é um Salgueiro-chorão. Também nunca vi um. Acho que não nasce aqui, mas você era um Salgueiro-chorão e eu me agarrava à sua rama com toda a força que podia, embora com medo de que o galho pudesse arrebentar. Vez ou outra, cansada de me dependurar , descia do galho e me sentava encostada ao seu tronco, entre suas raízes. Ficava ali durante um tempo, sob sua sombra. Acontece que eu cansei. Eu me fartei de ora ficar sob sua sombra, ora ver você como meu único recurso e salvação. Cansei e fui cortando o galho, afastando-me da sua sombra. Continuo esse caminho tortuoso, tentando me encaixar em algum lugar, em alguma coisa que me sirva, sem me agarrar, sem depender. Vou seguindo da maneira que consigo, mas que maneira é essa eu nem sei.
Não queria ser essa pessoa que se agarra ao seu galho. Queria ser um Salgueiro-chorão, assim como você. Queria ser essa árvore grande e bonita e pendular que você é. Queria nascer ao seu lado, crescer ao seu lado e fazer por você o que você faz por mim. Queria compartilhar a sombra e os galhos. Queria que nos balançássemos neles não por obrigação, mas por sermos livres e ditosos. Você precisa ser feliz, você sabe? Você é tão lindo e tão especial que eu queria fazer por você esse monte de coisa boa que você faz por mim sem perceber, mas sem depender, sem me agarrar. Também não gostaria que se agarrasse a mim. Não acho saudável, nem pra você, nem pra mim. Eu fui cortando o galho porque você teve medo de que eu não conseguisse nunca mais descer e me chicoteava com todo os outros para que eu me desprendesse. Não precisa ser assim, você sabe? Você me entende e sabe que eu te entendo, mesmo ninguém compreendendo o que você fez e faz. Quero compartilhar uma coisa assim qualquer como essa fresquidão das nossas sombras, como esses anos que ainda vamos carregar nos galhos, as folhas que ainda vamos trocar no inverno. Quero que a gente esteja lado a lado para suportar a troca da casca. Quero ver agora o seu Salgueiro-chorão perder a cortiça e mostrar-se. Quero que você me mostre o seu verdor, sem medo, sem amarras, pressa, nem pressão.
Eu vou ficar aqui ao seu lado, tentando ser um Salgueiro-chorão tão bonito e vistoso como você, pra ver se um dia você também me deixa balançar no seu galho em uma tarde de sol debaixo da sua sombra.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Uma vez conheci uma garota. Era magra e tão baixa que eu poderia cobrir todo o seu corpo com o meu. Era regida pelo Sol e eu percebia isto em cada lugar por onde passávamos. Parecia que ela tinha luz própria; todos viravam para observá-la e os olhares a seguiam até que sumisse de vista ou até que percebessem que sua luz não brilhava para eles, para nenhum deles. Era para mim que ela sorria sempre, aquele sorriso frouxo e lasso, como se seus lábios estivessem sempre cansados. A primeira vez que a vi, quis entrar como um louco dentro dela, em todos os sentidos, e descobrir como aquela criatura conseguia ser tão surrealmente encantadora e diferente de todas as outras. Ninguém tinha aquele perfume e jamais poderia ter. Era como se uma flor tivesse existido uma única vez para dar a ela uma característica singular que não se encontraria em nenhuma outra mulher e que ficaria presa ao meu corpo para sempre. Tudo nela me chamava absurdamente e isso me dava um medo paralisante. O que se sucedeu a partir de então foram dias loucos, tormentas, dias ensolarados de queimar a pele, nevasca e terremoto. Estar com ela era como não ser constante em momento algum. Um dia ela era maluca e me odiava por não avisar quando ía embora. Sentia-se deixada para trás, era o que dizia. No outro, ela era quase santa. Porém, nunca casta. Um dia ela queria rasgar minha roupa no meio da rua e no outro queria só segurar minha mão e me puxar para perto. Um dia ela me procurava com saudade e no dia seguinte parecia que eu já não existia. E eu sei que ela queria mesmo que eu nunca tivesse aparecido aquela noite. Mas tudo o que ela fez foi porque lhe tirei tudo o que pude e a mantive por perto enquanto me era oportuno. Fui mesquinho com o que ela sentia por mim e a colocava à prova, mas ela era conivente com os meus erros porque tinha medo de me perder. E eu continuava me aproveitando disto. Continuei tirando tudo o que podia. Primeiro tirei seu sono, depois tirei sua fome. Por fim, tirei seu juízo. Eu a transformei em uma louca desvairada. Toda noite ela dormia com a tv ligada porque não suportava mais o peso dos seus pensamentos; eu estava sempre neles, tirando sua sanidade. E a única coisa que ela queria era que eu lhe acompanhasse até em casa, contasse-lhe minhas histórias e a fizesse rir até chorar. Queria que eu lhe desse um beijo no meio da praça, para saber que eu me importava com ela. E eu me importava. Apesar de todas as vezes em que não atendi suas ligações, de todas as horas que a deixei esperando por uma resposta ou apesar de todas as respostas que ela não recebeu, eu me importava. De um jeito não usual e mudo, ora estranho e incompreensível, queria mantê-la ali, queria que ela sentasse no bar comigo, queria que ela lembrasse de mim quando estreasse o filme que ela esperou dois anos para assistir. Queria que apenas eu pudesse ver seus olhos brilhando ao segurar sua mão sem aviso. Ela transformou minha vida de tantas maneiras diferentes, revirou minha cabeça de tantas maneiras diferentes que tive medo que ela pudesse fazer isso em outras vidas. Sei que todos queriam estar no meu lugar junto a ela na cama. Todos queriam vê-la acordar com o rosto vermelho, queriam vê-la ofegar, queriam vê-la pular e dançar feito louca, os braços pro alto, o cabelo bagunçado. Tudo o que só eu podia ver, tudo o que ela queria que só eu pudesse ver, deixei para trás entre o beijo de bom dia de uma boca entreaberta em sono e o primeiro e último gole no café.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Vinte e Oito Noites

Já estava de malas prontas, passagem só de ida para Berlim. No check-in esperei você aparecer, tomar-me em seus braços, dar-me um beijo de adeus e me pedir para ficar. Baiser d'adieu, diriam os franceses, como se os desencontros tivessem sempre um caráter de beleza. Nunca pensei assim. Mas pensava em você, sempre pensei, desde o dia em que te vi pela primeira vez com olhos desnudos e não viciados de um amor moribundo. Havia você na minha cabeça. Sempre houve, desde aquela noite, lá no inconsciente, sem que eu pudesse te trazer para a superfície. Sei que eu também existi no fundo da sua cabeça a partir daquele momento, mas sempre que tentei me tornar consciente, você recuava e me afundava novamente na câmara escura da sua mente. Ali fiquei até cansar de receber por uma fresta a luz que você queria me dar. E houve tanto medo do descontrole, tanta pele e tanto pelo. Deveria ter deixado seu nome incólume e seu corpo imaculado. Sempre um impulso tão sôfrego de destruir o que mal começara a criar história. Sempre o medo, sempre o descontrole. Então, depois de vinte oito noites oscilando entre te ter e te perder, larguei as malas e a partida no avião e corri para te ver, nas mãos o For Those About to Rock em vinil que comprei e devolvi sete vezes sem coragem de te entregar. Pensava em subir ao quarto andar e colocá-lo na sua mesa, embrulhado em um papel azul, para quando chegasse. E eu queria ter deixado e queria ter estado lá para ver o seu sorriso por baixo da sua barba castanha. Mas eu vim até aqui. Vim até aqui com o vinil e sem as malas e sem vergonha na cara. Despida daquele medo congelante, eu vim até aqui, debaixo de um céu chuvoso que deveria ser o céu de Berlim, acima de você e de mim, no Portão de Brandemburgo. Vim e só encontrei um bilhete seu preso na porta, dizendo que estava indo embora para longe, para bem longe de onde eu pudesse estar e que eu, talvez em vinte e oito meses ou vinte e oito anos, teria notícias suas. Ou nunca mais.
E você sabia que eu voltaria.

Perdi minha escala em Frankfurt.

terça-feira, 4 de maio de 2010

- Eu falei que elas eram tortas.
- Hãn?
- Minhas pernas.
- O que tem suas pernas?
- Eu te falei que elas eram tortas, dia desses.
- E daí?
- E daí que hoje cedo você estava olhando fixamente para elas para saber se era verdade.
- Óbvio que não. Viajou.
- Então, o quê?
- Eu estava gravando na memória cada parte de você antes de te mandar embora de vez.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Todas as pessoas que me falam sobre amor próprio são as que menos se amam.

domingo, 26 de abril de 2009

Você é um evento tão apressado: no início da primeira semana você era apenas visões casuais, olhares interceptados. Com o passar dos dias já possuía nome e voz, talvez tivesse também um pouco de coragem. Na segunda-feira seguinte passou a ser dois beijos no rosto, chegou direito em casa?, cheguei, obrigada, e se transformou em preocupação; conversas; os olhos azuis, em verdes; uma embalagem de pastilhas para dor de garganta. Os dois beijos no rosto encontraram os lábios, e já tinha, então, o caminho certo, endereço e telefone, obrigado pelo dia, já te adoro, ao fim da quarta-feira; talvez fosse dia onze. Mais alguns dias passaram, mas nada que se transformasse em uma semana. Houve quebra de comunicação e uma forte dor ao ler cada página de frases soltas que você rabiscava pelos cadernos de filosofia, talvez fosse economia, teoria, inovação. O restaurante e os empresários conheceram a história de oito dias anteriores, sofreram, perderam o apetite, quase perderam a hora de voltar ao trabalho, "eu não quero perder você", você disse. Seus pés caminhavam ao lado dos meus enquanto os olhos nos observavam, sua mão vez em quando parava sobre a minha repousada em meu ombro, e seus lábios me beijavam os cabelos à medida que a Avenida se aproximava. Até hoje não sei bem se rio ou se choro ao lembrar do seu esforço para me fazer sorrir, os pensamentos em minha cabeça como o sino da Candelária ao meio dia – você jamais ouvirá esse som novamente. Então, a beira da calçada. Então, você, tão mais alto, o sinal aberto – não para nós; nunca para nós dois. Então, eu. Então, você, e os carros que passavam barulhentos e aos montes em uma Rio Branco vasta e taciturna – era a primeira vez que a via assim, sem sentido, sem vida, sem fim, angustiante. Lembro bem, era uma quinta-feira previsível. Talvez fizesse sol, talvez as nuvens já tivessem coberto toda e qualquer remota esperança que me acordara aquele dia, anunciando a tempestade que já havia caído sobre nós alguns minutos antes.No trânsito de corpos, eu reparava em seu reflexo no vidro dos carros, e ao olhar seus olhos que não viam que os meus os procuravam, repetia como um mantra cada palavra sua, cada [falsa] sinceridade admirável que você me fizera conhecer entre a inquietação de suas pernas e o guardanapo picado sobre a mesa.Você é um evento tão apressado, mas não tem hora marcada. Acontece quando quer, muda de roupa, de vontade, sem avisar. Chega devastando a quietude, ou vai embora, muda-se de lugar, sem ao menos deixar um bilhete, uma resposta. Você é um evento tão apressado, mas não tem pressa em me fazer voltar. Pediu para que eu esperasse, e eu espero, meus braços dormentes abertos, com a paciência de um monge budista.
Até que você bata àquela mesma porta, cansado, com fome, com saudade, debaixo de chuva, no meio da madrugada, dizendo que a espera se findou e que nunca mais vai me deixar.